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A Moralidade Depende de Deus? A Teoria do Comando Divino e o Dilema de Eutífron

Ao longo da história, muitas pessoas acreditaram que a moralidade está diretamente ligada à vontade divina. Segundo essa visão, chamada de Teoria do Comando Divino, algo é certo porque Deus ordena e errado porque Deus proíbe. Isso significa que os mandamentos divinos fornecem um guia absoluto para o comportamento humano, evitando que a moralidade se torne apenas uma questão de opinião. Mas será que essa ideia é suficiente para resolver todas as questões éticas?

A princípio, essa teoria faz sentido. Em muitas tradições religiosas, encontramos normas morais que incentivam o respeito, a honestidade, a compaixão e a justiça. Essas regras fornecem direções claras para quem busca viver corretamente. Mas, quando analisamos essa teoria mais de perto, percebemos alguns desafios que não podem ser ignorados.

O diálogo Eutífron, escrito por Platão, é uma obra filosófica que discute a relação entre moralidade e religião. Platão (427-347 a.C.) foi um dos filósofos mais importantes da Grécia Antiga e discípulo de Sócrates. Suas obras geralmente apresentam Sócrates como personagem principal, utilizando o método dialético para questionar e refutar ideias comuns. No Eutífron, Sócrates encontra um jovem chamado Eutífron, que afirma saber exatamente o que é moralmente correto, pois age conforme a vontade dos deuses. Sócrates, então, propõe um dilema que se tornou um dos maiores desafios para a Teoria do Comando Divino:

"Os deuses gostam do que é bom porque é bom, ou algo é bom porque os deuses gostam?"

Se algo é bom apenas porque Deus quer, então a moralidade se torna arbitrária. Deus poderia ordenar qualquer coisa – até mesmo ações que consideramos horríveis, como a tortura de inocentes – e elas seriam automaticamente corretas. Mas isso parece errado, pois a moralidade não pode depender de um simples capricho. Se Deus dissesse amanhã que mentir é moralmente obrigatório, teríamos que aceitar isso sem questionamento?

Se, por outro lado, Deus ordena certas coisas porque elas já são boas, então a moralidade existe independentemente da vontade divina. Isso significa que devemos estudar ética para entender o que faz algo ser moral, em vez de apenas seguir ordens divinas. Esse é um argumento forte para defender que a moralidade não vem exclusivamente de Deus, mas pode ser compreendida racionalmente.

Mesmo que alguém acredite que a moralidade vem de Deus, surge um problema: como saber exatamente quais são os mandamentos divinos?

Os textos sagrados oferecem direções, mas eles nem sempre são claros ou interpretados da mesma forma. O cristianismo, por exemplo, tem diversas denominações – católicos, evangélicos, ortodoxos – e cada uma delas interpreta a Bíblia de maneira diferente. O batismo infantil, a necessidade de boas obras para a salvação e a aceitação de uniões entre pessoas do mesmo sexo são temas interpretados de formas distintas, mesmo com a Bíblia como referência comum.

Além disso, regras morais variam entre religiões. O judaísmo proíbe o consumo de carne de porco, o islamismo também, mas o cristianismo não tem essa restrição. Já o budismo recomenda o vegetarianismo. Se Deus estabelece regras morais absolutas, por que há tantas diferenças? Isso mostra que parte da moralidade não vem apenas da religião, mas também das tradições culturais de cada povo.

Outro problema surge quando analisamos como certos mandamentos podem ser aplicados na vida real. "Não matarás" parece uma regra simples, mas o que acontece em casos como legítima defesa ou guerra? Um policial que atira em um terrorista prestes a explodir uma escola está cometendo um assassinato ou protegendo inocentes? Se "Honrar pai e mãe" é um dever absoluto, o que um filho deve fazer quando os pais pedem algo moralmente errado, como comprar cigarro ou mentir em seu nome? Esses dilemas mostram que os mandamentos não são sempre diretos e exigem interpretação e reflexão.

Isso nos leva a outro problema: a consistência moral ao longo do tempo. Algumas regras que antes eram aceitas em sociedades religiosas hoje são consideradas moralmente erradas. A escravidão, por exemplo, era permitida na antiguidade e, em certos momentos, foi defendida por religiosos com base em textos sagrados. Hoje, essa prática é universalmente condenada. Se a moralidade vem de Deus e não pode mudar, por que houve essa transformação? Uma explicação é que a moralidade não pode ser apenas uma questão de seguir mandamentos, mas deve ser interpretada de acordo com o contexto social e histórico.

Isso não significa que a religião não possa oferecer uma base moral para seus seguidores, mas sugere que a moralidade vai além de simplesmente seguir regras escritas. A ética exige reflexão, questionamento e compreensão das razões que tornam algo certo ou errado. Mesmo dentro de uma visão religiosa, é necessário interpretar os textos sagrados e aplicá-los à realidade, pois a vida é complexa demais para ser guiada por normas rígidas sem espaço para questionamento. Afinal, moralidade não é apenas obedecer ordens, mas entender por que certas ações são corretas ou erradas, independentemente de quem as determina.


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