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Sujeito e Objeto do Conhecimento

Quem conhece quem? O sujeito conhece o objeto ou o objeto se impõe ao sujeito? Hoje vamos falar sobre uma das questões centrais da teoria do conhecimento: a relação entre o sujeito e o objeto. Antes de mergulhar nas teorias filosóficas, a gente precisa entender dois conceitos fundamentais: o sujeito e o objeto do conhecimento.

O sujeito do conhecimento é aquele que conhece. É o ser pensante, o agente da atividade de conhecer. Geralmente, o ser humano. É quem observa, interpreta, formula ideias, faz perguntas e tenta compreender o mundo à sua volta.

Já o objeto do conhecimento é aquilo que é conhecido. Pode ser uma coisa, um fato, um conceito, uma imagem, um fenômeno da natureza... tudo aquilo que está “diante” do sujeito e que pode ser investigado, analisado, compreendido. Pra deixar isso mais claro: você, que está lendo a este texto agora, é o sujeito do conhecimento. O que aparece na sua tela, é o objeto.

Essa relação entre sujeito e objeto é o ponto de partida da teoria do conhecimento. A grande pergunta que atravessa toda a história da filosofia é: como essa relação acontece? O sujeito realmente capta a verdade do objeto? Ou ele só interpreta, distorce, reconstrói aquilo que vê?


  1. A Primazia do Objeto

Durante boa parte da história da filosofia, a ideia dominante era a de que o conhecimento verdadeiro está no próprio objeto. Ou seja, cabe ao sujeito ajustar sua mente para alcançar uma verdade que já está dada — no mundo, na natureza ou no divino.

Vamos começar com Platão. Para ele, conhecer é recordar. A alma humana já esteve em contato com as Ideias eternas — realidades perfeitas, imutáveis — e, ao nascer, esquece tudo. O conhecimento, então, não é algo que vem de fora, mas uma lembrança interior. O sujeito precisa se voltar para dentro de si para reencontrar a verdade que já existe no mundo das Ideias.

Aristóteles, por outro lado, parte da experiência concreta. O conhecimento começa pelos sentidos, mas não se limita a eles. A mente humana tem o papel de captar a “forma” das coisas, aquilo que faz cada ser ser o que é. Ou seja, o objeto possui uma verdade objetiva, que pode ser conhecida racionalmente.

Na tradição cristã, essa ideia é aprofundada. Para Santo Agostinho, a verdade não está nos objetos sensíveis, mas em Deus. O conhecimento é possível porque Deus ilumina a mente humana. O sujeito só pode conhecer porque é iluminado por algo maior.

Mais tarde, Tomás de Aquino vai tentar conciliar razão e fé. O mundo criado por Deus é racional e ordenado, então a mente humana pode conhecê-lo por meio da razão, mas até certo ponto. Há verdades que só podem ser alcançadas pela fé.

Em todos esses casos, o sujeito é visto como alguém que deve se abrir à verdade, não criá-la. A verdade é exterior, eterna, objetiva. O papel do sujeito é se adequar a ela, seja lembrando, percebendo, sendo iluminado ou raciocinando.

A partir da modernidade, começa a surgir uma grande virada: o sujeito do conhecimento passa a ganhar protagonismo. A pergunta deixa de ser apenas “o que é a verdade?” e passa a incluir “como conhecemos?”, “a partir de onde conhecemos?”. Em outras palavras: como o sujeito participa da construção do conhecimento? É nesse cenário que surgem duas grandes correntes filosóficas: o racionalismo e o empirismo.

Para os racionalistas, como Descartes e Leibniz, o conhecimento começa no próprio sujeito. A razão é a fonte segura da verdade. Descartes vai dizer: “Penso, logo existo.” O ponto de partida do conhecimento é a certeza que o sujeito tem de si mesmo. A partir daí, ele busca construir, com ideias claras e distintas, um edifício sólido do saber. O objeto só pode ser conhecido se passar pelos filtros da razão.

Do outro lado, os empiristas, como Locke e Hume, vão afirmar que o conhecimento vem da experiência. O sujeito nasce como uma tábula rasa (uma folha em branco), e é o mundo que escreve nessa folha. O que conhecemos vem dos sentidos, e a mente apenas organiza, associa e classifica os dados que recebe do objeto.

Aqui, vemos claramente a tensão: de um lado, a confiança no poder da razão para conhecer; de outro, a confiança na experiência sensível como fonte do saber. Mas ambos os lados ainda compartilham uma ideia comum: a busca por um fundamento seguro para o conhecimento, seja na razão, seja nos sentidos.

Só que, no fundo, essa disputa revela uma crise mais profunda: será que é possível encontrar um ponto de partida absolutamente confiável? Será que o sujeito conhece o objeto como ele é, ou apenas como ele aparece? E o que garante que esse conhecimento é verdadeiro? Essa crise vai preparar o terreno para uma das viradas mais importantes da história da filosofia: a chamada Revolução Copernicana de Kant.


  1. Revolução Copernicana do Conhecimento

Antes de Kant, predominava uma visão filosófica que podemos chamar de realista e dogmática. Nessa tradição, o objeto era considerado o centro do conhecimento. Cabia ao sujeito, ou seja, à mente que conhece, apenas se adequar ao mundo, ajustando seu pensamento à realidade tal como ela é.

O sujeito era visto quase como um espelho passivo. Bastava observar o mundo com atenção, descrever corretamente os fatos e, assim, alcançar a verdade. A tarefa da filosofia era, basicamente, captar a essência dos objetos e representar fielmente o que eles são.

Foi contra essa lógica que Kant se voltou. Ele propôs uma inversão radical: o conhecimento não é simplesmente uma cópia do mundo exterior. Pelo contrário, o sujeito tem um papel ativo na constituição do conhecimento. O objeto, tal como o conhecemos, não existe “pronto” fora de nós — ele depende das formas pelas quais nós o percebemos e pensamos.

Esse movimento é o que Kant chama de “revolução copernicana” na filosofia. Assim como Copérnico mostrou que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, Kant afirma: não é o sujeito que gira em torno do objeto; é o objeto que aparece segundo as condições do sujeito.

A grande inovação de Kant é colocar o sujeito no centro da experiência. Isso não significa que tudo é invenção da mente, mas sim que a mente tem um papel fundamental na forma como o mundo nos aparece.

Na filosofia kantiana, o sujeito não é mais um observador passivo, que apenas recebe informações do mundo. Ele é um agente ativo, que participa da construção da própria experiência.

Tudo começa com a sensibilidade: é por meio dos sentidos que recebemos os dados brutos da realidade cores, sons, formas, texturas... Kant chama isso de intuições sensíveis.

Mas para que esses dados façam sentido, eles precisam ser organizados. E é aí que entra a parte mais importante: nós organizamos essas informações segundo estruturas mentais que já estão em nós, antes de qualquer experiência. Essas estruturas são chamadas de formas a priori. Ou seja, formas que existem antes da experiência.

As duas principais formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo. Não vemos o espaço e o tempo “lá fora” eles são molduras mentais que usamos para organizar aquilo que sentimos.

Além disso, o entendimento usa categorias para dar forma ao que percebemos. Causalidade, unidade, pluralidade, substância, possibilidade... são conceitos fundamentais que não vêm da experiência, mas que usamos para interpretar a experiência.

Sem essas estruturas, simplesmente não haveria experiência. Veríamos um fluxo caótico de sensações, mas não reconheceríamos objetos, relações, nem ordem. Tudo aquilo que chamamos de “mundo” só aparece porque nossa mente o organiza de maneira inteligível.

Diante disso, surge uma consequência central do pensamento de Kant: o objeto do conhecimento não é simplesmente o que está “lá fora”, independente do sujeito. O que chamamos de “objeto” é, na verdade, o resultado da interação entre aquilo que recebemos dos sentidos e as estruturas com que o sujeito organiza essas informações.

Por isso, Kant afirma que o objeto do conhecimento é sempre um fenômeno. Isto é, aquilo que aparece ao sujeito, conforme as formas da sensibilidade (espaço e tempo) e as categorias do entendimento.

Isso significa que nunca temos acesso direto à coisa como ela é em si mesma. Não conhecemos o objeto em sua essência, de forma pura e independente da mente. O que conhecemos é como esse objeto nos aparece, dentro dos limites das nossas formas de perceber e pensar.

Esse ponto é decisivo: não conhecemos o mundo como ele é “em si”, conhecemos o mundo como ele se nos apresenta. A realidade que experimentamos é sempre mediada por nossa estrutura cognitiva.

Mas atenção: isso não é relativismo. Kant não está dizendo que tudo é subjetivo ou que não há verdade. O que ele está dizendo é que toda verdade possível para nós está condicionada pela maneira como nossa mente funciona.

Para entender bem a teoria de Kant, é fundamental distinguir dois conceitos: fenômeno e coisa em si. O fenômeno é o objeto como aparece para nós, já filtrado pelas formas da nossa sensibilidade (espaço e tempo) e organizado pelas categorias do nosso entendimento. É tudo aquilo que conseguimos perceber, compreender e estudar. A ciência, por exemplo, se ocupa do mundo dos fenômenos.

Já a coisa em si, ou noumeno, é o objeto como ele é independentemente da nossa experiência, aquilo que existiria mesmo que nenhum ser humano o estivesse percebendo. Mas Kant diz claramente: esse objeto é inacessível. Nós não temos como conhecer a coisa em si, porque todo conhecimento é condicionado pelas nossas formas de conhecer.

Em outras palavras: o fenômeno é o que podemos conhecer. A coisa em si, não. Podemos até pensar nela, levantar hipóteses, mas não temos como experimentá-la nem compreendê-la diretamente.

Esse limite é fundamental para a filosofia crítica: a razão deve reconhecer até onde ela pode ir. Conhecer é sempre conhecer fenômenos. O mundo como ele aparece para nós, e não como ele seria em si mesmo, fora de toda e qualquer experiência. Na filosofia kantiana, conhecer não é apenas perceber ou organizar informações. É também refletir sobre a própria atividade de conhecer.

Mesmo quando estamos apenas pensando, não estamos livres da estrutura da mente. Pensar é sempre pensar a partir de formas mentais que já estão em nós. E o que garante a unidade de tudo isso, o que conecta todas as percepções, pensamentos, julgamentos, é o que Kant chama de apercepção transcendental.

Esse nome complicado significa o seguinte: há um “eu penso” que acompanha todos os meus pensamentos. Mesmo quando não estou dizendo isso em voz alta, existe em mim a consciência de que todos os meus pensamentos são meus, pertencem a um mesmo sujeito. Sem essa unidade, a experiência não faria sentido seria uma colagem desconexa de percepções.

Mas a razão vai além. Ela busca totalidade, universalidade, fundamentos últimos. E é justamente aí que ela pode ultrapassar os limites da experiência tentando pensar, por exemplo, Deus, a alma, ou o universo como um todo. Só que, segundo Kant, ao fazer isso, a razão entra num campo perigoso: a dialética transcendental. Ou seja, ela começa a gerar contradições, ilusões, conflitos. Não porque esses temas sejam proibidos, mas porque eles estão além daquilo que podemos experimentar.

Por isso, Kant não diz que devemos parar de pensar sobre esses temas, apenas que não podemos tratá-los como objetos de conhecimento no sentido científico ou empírico. Podemos refletir sobre eles, mas sem a pretensão de conhecê-los como conhecemos um fenômeno qualquer. Na filosofia kantiana, conhecer não é apenas perceber ou organizar informações. também refletir sobre a própria atividade de conhecer.

Para Kant, o conhecimento é possível, mas dentro de certos limites. Ele não nos dá acesso ao “absoluto”, mas nos permite compreender o mundo tal como aparece a nós, com rigor, com método e com reflexão crítica. Essa é a virada que torna Kant um divisor de águas na história da filosofia: ele reconstrói a relação entre sujeito e objeto, entre mente e mundo, entre razão e experiência e com isso, funda uma nova forma de pensar.

Essa mudança proposta por Kant, que coloca o sujeito no centro da experiência, vai influenciar profundamente a filosofia posterior. A partir dela, surgem caminhos como a fenomenologia, que aprofunda a análise da consciência; o idealismo alemão, que expande a ideia do sujeito como fundamento da realidade; e até críticas como as de Nietzsche e Marx, que mostram como o sujeito também é moldado pela história, pela linguagem, pelo corpo, pelo poder. A partir de Kant, a pergunta sobre “como conhecemos” nunca mais será a mesma.


Referências: Teeteto, Platão; De Magistro, Agostinho; História da Filosofia de Reale e Antiseri; Meditações de Descartes; Crítica da Razão Pura de Kant.

 
 
 

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