É justo fugir? Crito ou do Dever
- Pedro Cortat
- 18 de ago.
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1. Introdução
No ano de 399 a.C., em Atenas, Sócrates estava preso e aguardava a execução de sua pena de morte. Ele havia sido condenado por “corromper a juventude” e “não respeitar os deuses da cidade”. Mesmo defendendo-se no julgamento e afirmando que sua atividade filosófica era um serviço à cidade e à divindade, foi considerado culpado. Após a sentença, um período de festividades religiosas adiou a execução por alguns dias. É nesse intervalo que se passa o diálogo que estudaremos.
O amigo de longa data, Crito, visita Sócrates na prisão com uma proposta clara: ele organizou um plano de fuga. Tudo estava preparado, desde subornos até a garantia de acolhimento em outra cidade-estado. Só faltava a aceitação de Sócrates. Essa conversa, registrada por Platão, é mais do que um simples episódio histórico: ela levanta uma questão que continua atual e polêmica.
Devemos sempre obedecer às leis, mesmo quando parecem injustas? Ou, diante de uma injustiça clara, é legítimo desobedecer?
Para aproximar esse dilema da realidade de hoje, pense em situações em que alguém decide desobedecer a regras por acreditar que elas estão erradas. Pode ser um ativista que protesta contra uma lei que considera injusta, um atleta que quebra um regulamento para denunciar desigualdades ou mesmo um estudante que enfrenta regras escolares consideradas arbitrárias. A questão central é: quando o certo e o legal entram em conflito, qual deve prevalecer?
Esse é o ponto de partida da conversa entre Sócrates e Crito, que vai nos ajudar a refletir sobre os limites da obediência e as exigências da justiça.
2. Os argumentos de Crito
Crito sabia que não adiantaria apelar para o medo da morte, pois Sócrates já havia mostrado não a temer. Então, ele constrói seus argumentos em torno de valores que sabia que o amigo prezava: honra, responsabilidade e justiça.
O primeiro ponto de Crito é pessoal e direto. Se Sócrates aceitasse a execução, ele perderia um amigo insubstituível. Além disso, a opinião pública veria a situação como descaso: pareceria que Crito e os outros amigos não fizeram o suficiente para salvá-lo, ou que não quiseram gastar dinheiro para isso. Em Atenas, a reputação era importante, e Crito temia que sua imagem fosse manchada por essa impressão.
O segundo ponto é familiar. Sócrates tinha filhos pequenos e, se morresse, deixaria a responsabilidade de criá-los e educá-los para outros. Crito diz claramente que um pai tem o dever de estar presente, e que fugir seria a forma de cumprir essa obrigação.
O terceiro ponto é político e moral. Se Sócrates aceitasse passivamente a execução, estaria ajudando seus inimigos, permitindo que a injustiça triunfasse. Fugir, ao contrário, seria um ato de coragem, negando a vitória a quem o havia condenado injustamente.
Imagine um amigo que está prestes a sofrer uma punição injusta e você tem a chance de ajudá-lo. Você não teme a punição em si, mas pensa na imagem que passará se não agir, nas responsabilidades que essa pessoa tem com a família e no efeito de deixar que uma injustiça se concretize. A pergunta que fica é: ajudar a escapar da punição seria leal e justo, ou seria também quebrar uma regra que deve ser respeitada?
3. A resposta de Sócrates
Sócrates ouve atentamente, mas logo desmonta a lógica do amigo. Para ele, não basta pensar no que parece bom ou vantajoso. O que importa é agir de acordo com o que é realmente justo. Fugir poderia resolver o problema imediato da morte, mas, se fosse injusto, traria um dano muito maior: corromperia sua própria alma e daria um mau exemplo aos filhos e à cidade.
É nesse ponto que ele afirma: “Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si.”. Sócrates faz uma comparação: tal como um atleta deve ouvir apenas o seu treinador e não a multidão sobre como cuidar do corpo, o cidadão deve ouvir apenas quem entende de justiça para decidir o que é certo ou errado. Para ele, seguir a opinião popular é perigoso, pois “a multidão não é capaz de dar o siso, bem como de tirá-lo, ela obra ao sabor do acaso”. Essa frase sintetiza uma das ideias centrais do diálogo. Para Sócrates, não é a opinião da maioria que deve guiar nossas decisões, mas aquilo que é correto em si, mesmo que poucos reconheçam.
Nem sempre o que a maioria acha ou o que está mais popularizado nas redes sociais corresponde ao que é justo ou verdadeiro. Seguir o julgamento da multidão pode levar a erros, assim como no caso de seguir boatos ou agir apenas para agradar o grupo. Sócrates convida Crito, e a nós, a refletir sobre quem ou o que realmente é autoridade para definir o certo e o errado. Essa postura exige coragem, porque, ao ignorar a opinião da maioria, podemos nos tornar impopulares ou sofrer consequências. Mas, para Sócrates, a integridade moral e o compromisso com a justiça valem mais do que a aprovação pública.
4. O debate central: obedecer sempre à lei?
Depois de recusar os apelos baseados na amizade, na família e na reputação, Sócrates leva a conversa para o ponto decisivo. Ele afirma que cometer injustiça nunca é aceitável, mesmo em resposta a outra injustiça. É quando declara: “Em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause.”
Esse princípio contraria uma ideia comum, tanto na época como hoje: a de que é legítimo “dar o troco” quando se é injustiçado. Para Sócrates, fazer isso é colocar-se no mesmo nível de quem cometeu a primeira injustiça. Se as leis o condenaram injustamente, fugir significaria desrespeitar essas mesmas leis, causando um novo dano agora não apenas a si, mas à ordem da cidade.
A discussão toca num dilema presente em vários contextos. Pense em alguém que sofre uma punição indevida. Se essa pessoa responde quebrando regras ou prejudicando outros, estará corrigindo o erro ou criando outro? Sócrates diria que, nesse caso, a escolha moralmente correta é não manchar a própria conduta, mesmo que isso signifique sofrer a consequência injusta.
Esse raciocínio reforça a ideia de que a justiça não depende apenas do resultado, mas também do caminho seguido. Fazer o certo exige coerência, mesmo quando isso parece desfavorável.
Sobre os outros argumentos de Criton ele diz o seguinte, a relação do cidadão com sua cidade é mais profunda do que a relação com os pais, pois dela vieram não apenas sua vida, mas também sua educação, proteção e espaço para viver. No discurso imaginário das Leis, elas lembram a Sócrates que, durante 70 anos, ele viveu em Atenas, participou de sua vida cívica, educou seus filhos e nunca buscou o exílio, mesmo tendo oportunidades para isso. Permanecer foi, para elas, um sinal de aceitação das regras. Fugir agora seria romper um compromisso livremente assumido.
As Leis também alertam que, se ele escapasse, em cidades bem organizadas seria visto como inimigo da ordem, e, em lugares mais permissivos, teria de viver como forasteiro sem credibilidade para falar sobre justiça. Além disso, seus amigos poderiam sofrer perseguições e perder bens por ajudá-lo. É nesse contexto que Sócrates reforça: “A pátria é mais respeitável, mais venerável, mais sacrossanta [...] que o dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados.” Essa frase expressa a visão socrática de que viver em uma cidade é aceitar um tipo de acordo ou contrato. Quem usufrui dos benefícios das leis e instituições, segundo ele, assume o compromisso de obedecer às regras e, se achar que estão erradas, deve tentar mudá-las de forma legítima, e não simplesmente ignorá-las.
Mas aqui a reflexão se abre. Será que isso significa que sempre devemos obedecer às leis, mesmo quando elas são claramente injustas? Em tempos mais recentes, figuras como Martin Luther King Jr. e Gandhi defenderam a desobediência civil como forma legítima de enfrentar leis opressoras, aceitando até as punições como parte do protesto.
É útil pensar em exemplos concretos: se uma lei proibisse algo que hoje consideramos um direito básico, o que seria mais justo? Obedecer para manter a ordem ou desobedecer para corrigir a injustiça? A posição de Sócrates é clara: a lei deve ser respeitada até que seja mudada, porque quebrá-la enfraquece todo o sistema. Mas a questão está longe de ter uma única resposta, e é justamente nesse espaço de dúvida que a filosofia encontra seu terreno mais fértil.
Podemos extrair do Críton um conjunto de conceitos fundamentais que servem como base para o estudo de política e filosofia política. Eles aparecem de forma implícita ou explícita no diálogo e ajudam a entender debates que atravessam séculos.
i. Justiça como princípio absoluto: Para Sócrates, a justiça não é relativa ao momento, à conveniência ou ao interesse pessoal. Ela é um princípio que deve guiar todas as ações. No diálogo, isso aparece na recusa a cometer injustiça mesmo para se livrar de uma condenação injusta. Essa ideia de justiça como valor absoluto contrasta com abordagens mais pragmáticas, que aceitam quebrar regras se isso trouxer um resultado considerado melhor. No estudo da filosofia política, isso abre a reflexão sobre a relação entre meios e fins: até que ponto é legítimo violar princípios para alcançar um objetivo político?
ii. Opinião da maioria versus verdade e razão: Ao afirmar que não devemos nos preocupar com o que diz a multidão, Sócrates introduz a distinção entre doxa (opinião) e episteme (conhecimento). Ele alerta que decisões morais e políticas não devem se basear apenas na opinião da maioria, mas naquilo que é fundamentado na razão e na verdade. Na política, isso levanta a tensão entre democracia (governo da maioria) e a necessidade de princípios ou direitos que protejam contra decisões populares injustas.
iii. Contrato social: O argumento socrático sobre obedecer às leis se apoia na ideia de um acordo tácito entre o cidadão e a cidade. Ao viver em Atenas, usufruindo de suas leis e instituições, o indivíduo aceita implicitamente obedecê-las. Essa noção antecipa a teoria do contrato social que será desenvolvida séculos depois por pensadores como Hobbes, Locke e Rousseau. O diálogo convida a discutir: até que ponto o cidadão está vinculado a esse contrato? E o que acontece quando o Estado não cumpre sua parte?
iv. Primazia da lei: Sócrates sustenta que, se cada um desobedecesse à lei quando discordasse dela, a ordem social se desintegraria. Aqui está o princípio do Estado de Direito: as leis devem ser respeitadas para que a vida coletiva seja possível. Esse conceito é central na filosofia política e no direito, mas o Críton também mostra seu limite: como agir quando as leis são injustas? Essa tensão é estudada tanto na teoria política quanto nas práticas de desobediência civil.
v. Dever cívico e responsabilidade moral: O diálogo evidencia duas visões de dever: Crito enfatiza o dever com amigos e família; Sócrates, o dever com a cidade e com a justiça. Esse conflito entre responsabilidades pessoais e coletivas é um tema constante na ética política, desde Antígona, de Sófocles, até debates atuais sobre engajamento e responsabilidade social.
vi. Injustiça não pode ser corrigida com injustiça: O princípio socrático de não retribuir injustiça com injustiça é uma defesa do agir ético universal, que não muda de acordo com quem é o alvo da ação. Isso conecta a discussão com teorias de ética deontológica (como a de Kant) e com visões pacifistas ou não-violentas na política, como as de Gandhi e Martin Luther King Jr.
vii. Obediência e reforma: Para Sócrates, se a lei é injusta, o caminho correto é tentar mudá-la por meios legítimos, e não violá-la diretamente. Essa ideia ainda é debatida no campo da teoria política: quais são os métodos legítimos de mudança política? E quando, se é que existe tal momento, a desobediência se torna moralmente obrigatória?
5. Objeções
Embora a defesa de Sócrates seja coerente com sua trajetória e princípios, ela não está livre de questionamentos. Há diferentes pontos do diálogo em que seus argumentos podem ser criticados a partir de outras perspectivas filosóficas e políticas. Em primeiro lugar, sua ideia de que viver em Atenas implica aceitar todas as decisões do Estado como parte de um contrato tácito pode ser contestada. Um contrato só é legítimo se ambas as partes o cumprem, e uma condenação injusta pode ser vista como quebra desse pacto, liberando o cidadão da obrigação de obediência.
Além disso, a defesa de obediência irrestrita à lei corre o risco de legitimar injustiças. Ao recusar qualquer ação que possa ser considerada injusta, mesmo para corrigir outra injustiça, Sócrates acaba sustentando a execução de uma pena que ele próprio acredita ser errada, o que reforça um sistema legal falho. Ao apresentar apenas duas opções (obedecer ou convencer a cidade a mudar), Sócrates ignora a possibilidade de protesto público por meio da recusa consciente em cumprir uma lei, como forma de expor sua injustiça. Fugir, nesse caso, poderia ter sido usado como ato simbólico de resistência.
A comparação entre a cidade e os pais também é frágil. Mesmo pais respeitados podem ser desobedecidos quando ordenam algo injusto, por exemplo, se seu pai te ordena matar seu irmão ele deve ser desobedecido. E o mesmo deveria valer para a cidade. Respeitar as instituições não significa obedecê-las cegamente.
Por fim, ao colocar o dever com a cidade acima de qualquer outra responsabilidade, Sócrates deixa de considerar que proteger e educar os filhos é um compromisso moral direto e intransferível. Nesse sentido, preservar sua vida para cumprir esse papel poderia ter sido uma escolha igualmente defensável.
Sócrates provavelmente responderia a essas objeções reafirmando que a justiça deve ser um princípio imutável, não condicionado pelas circunstâncias ou pelo interesse pessoal. Para ele, a cidade só se sustenta se as leis forem obedecidas mesmo quando desfavorecem o indivíduo, e romper esse compromisso por discordar de uma decisão abriria caminho para a desordem. Fugir, ainda que como forma de protesto, não teria valor moral se feito em segredo, pois privaria a comunidade do exemplo de enfrentar a morte mantendo a coerência com o que sempre defendeu. A analogia com os pais reforçaria, segundo ele, que a obediência à cidade é ainda mais essencial, já que ela garante a vida coletiva e o bem-estar da família. Quanto ao dever para com os filhos, Sócrates diria que deixá-los o exemplo de integridade e respeito à justiça é um legado mais importante do que garantir-lhes sua presença física obtida à custa de trair seus próprios princípios.
Conclusão
Narrativamente, o Críton se encerra com a vitória argumentativa de Sócrates sobre o amigo, mas não como um triunfo retórico vazio. Após ouvir e refutar todas as razões apresentadas, ele conclui que fugir seria injusto e incoerente com tudo o que defendeu ao longo da vida. Sócrates recorre à imagem das Leis personificadas, que lhe falam como se fossem interlocutoras, reforçando a ideia de que ele tem um pacto com a cidade e que violá-lo significaria prejudicar não apenas as instituições, mas também a si mesmo e sua reputação moral.
Diante dessa visão, Crito reconhece que não há mais o que dizer e desiste de insistir. O diálogo se fecha de forma serena, sem ação externa dramática, mas com a decisão irrevogável de Sócrates de permanecer na prisão e aceitar a execução, estabelecendo o tom trágico e coerente que prepara o leitor para o desfecho narrado em outros diálogos, como o Fédon.
E é aqui que a provocação final se impõe: se uma lei fosse claramente injusta e prejudicial, você teria coragem de desobedecê-la para defender o que acredita ser certo? Ou seguiria o caminho socrático, aceitando as consequências para não ferir a ordem estabelecida? Essa não é apenas uma pergunta sobre filosofia antiga. É um convite para refletir sobre as escolhas que fazemos hoje, nos pequenos e grandes dilemas em que o certo e o legal parecem apontar para direções diferentes.
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